José Hiran da Silva Gallo
Representante
de Rondônia e diretor-Tesoureiro do Conselho Federal de Medicina (CFM)
Doutorando
em Bioética pela Universidade do Porto/Portugal
Justiça
ocorre quando todos são tratados de forma equânime diante da lei, sem
privilégios ou preconceitos para este ou aquele. Esse é o parâmetro básico de
uma sociedade que preza a cidadania, que valoriza os direitos individuais,
humanos e trabalhistas. Infelizmente, episódios recentes do Programa Mais Médicos
mostram que, no Brasil, essa utopia igualitária dá passos cambaleantes.
Nosso
comentário não deve ser entendido como corporativista ou enviesado
ideologicamente. Pelo contrário, representa o pensamento de milhares de outros
que compartilham dessa mesma opinião e que enxergam em determinadas atitudes a
sombra do autoritarismo oportunista. De forma complementar, ressalto ainda que
num país democrático a liberdade de expressão deve ser respeitada como forma de
estimular o debate transparente em favor da melhoria da vida em coletividade.
Com
relação ao Programa Mais Médicos esclarecemos que o mérito da iniciativa é
relevante. É do conhecimento de todos que há realmente dificuldades de acesso à
assistência em saúde em todos os Estados, especialmente nas Regiões Norte e
Nordeste. No entanto, uma necessidade legitima tem sido usada como palanque
para implantação de um projeto ancorado em premissas falaciosas.
Ao
propor sua iniciativa, o Governo Federal insiste em dois pilares: acusa a falta
de médicos no Brasil e o desinteresse dos que existem em ocupar abertos em postos
nas áreas pobres e distantes. Os defensores do Mais Médicos se apressam a
concordar com tais teses. Mas, de nossa parte, estamos convictos de que elas são
tão verdadeiras quanto uma nota de três reais.
Explicamos:
em 1970, o país tinha 59 mil médicos. Hoje tem 400
mil. Em cinco décadas, o número de médicos saltou 677%, quase sete vezes mais
que o tamanho da população brasileira no mesmo período. Com isso, no mundo,
somente outros quatro países têm mais médicos. Os dados não mentem e evidenciam
que a propalada falta de profissionais inexiste, pelo menos em termos
absolutos.
Na verdade, o estratagema armado pelo Ministério da
Saúde ignora que a carência de médicos na rede pública e nas áreas de difícil
provimento resulta da incapacidade do Estado ocupar seu papel de indutor do desenvolvimento
na área social. Entendemos que a dificuldade em preencher as vagas existentes é
consequência do silêncio do Governo quanto às políticas públicas para atrair e
fixar médicos para atuarem pelo SUS em municípios do interior (ou nas
periferias dos grandes centros).
Se alguns insistem em desconsiderar esses
argumentos, chamamos atenção para outro aspecto relevante. Apenas a presença de
médicos – brasileiros ou intercambistas – é suficiente para resolver de vez a
falta de acesso ao atendimento? Claro que não. Novos relatos publicados pela
imprensa dão conta do que os Conselhos de Medicina têm dito há tempos. Um
médico sozinho, com um estetoscópio no pescoço, não soluciona a desassistência
em regiões historicamente abandonadas.
Para oferecer atenção em saúde com qualidade aos
cidadãos, o Estado deve fazer investimentos e melhorar sua capacidade de gestão.
O Brasil e os médicos precisam de leitos, remédios, insumos, apoio de equipes
multiprofissionais e uma rede de referência que permita que casos mais graves
sejam encaminhados para centros de média e alta complexidade. No formato atual,
o que vemos é a saúde placebo. É como se tentassem curar câncer de pulmão com
chá de camomila.
Outro aspecto solenemente ignorado pelos pais do
Programa Mais Médicos é a necessidade de atestar a competência dos
intercambistas de outros países que vêm atuar no Brasil. Quando o paciente
procura um médico entrega-lhe sua vida. Nas áreas mais pobres, essa
transferência é ainda maior. Caso o profissional que receba esse doente não tenha
a capacitação adequada, o resultado de sua intervenção pode ter consequências
irreversíveis.
Como indagou há alguns meses uma juíza do Acre, por
acaso os moradores da Avenida Paulista são diferentes daqueles que moram na
Amazônia? Porque eles têm direito a médico do SUS com diploma revalidado e os
ribeirinhos devem aceitar qualquer um. É justo tratar os brasileiros com
tamanha desigualdade?
Finalmente,
para os que não se convenceram sobre as injustiças ocultas no Programa Mais
Médico fazemos apenas alguns pontos de reflexão. Seria justo se seu marido,
esposa ou filho trabalhassem todos os dias, sem direito a sair de casa a noite
ou à viajar sem antes pedir a benção de seu “gerente”? Seria ético seu pai ganhar
bolsa de estudo um lugar de salário e não ter direito a 13º salário, férias
remuneradas e auxílio doença? Você estaria de acordo em receber apenas 10% do
seu salário do mês, ainda assim com direito de usar a metade desse valor apenas
depois de três anos, e ver o Governo embolsar seus cofres com os 90% restantes?
Diante
de tantos abusos é fácil ficar indignado. Assistimos de camarote casos de
patentes agressões à lei, tendo como vítimas profissionais ligados ao Mais
Médicos (brasileiros participantes e os intercambistas estrangeiros). Reagir a
este tipo de situação está longe de ser corporativismo. Trata-se de um
compromisso cívico e de defesa do exercício da cidadania plena dos brasileiros
e pessoas de qualquer nacionalidade que estejam na República Federativa do
Brasil.